É possível esperar privacidade em eventos? Caso do show do Coldplay nos diz muito sobre a resposta

Coldplay se apresenta no Rock in Rio 2022 Stephanie Rodrigues/g1 Quando a "KissCam" de um show do Coldplay capturou um casal que tentou (mas não conseguiu) esc...

É possível esperar privacidade em eventos? Caso do show do Coldplay nos diz muito sobre a resposta
É possível esperar privacidade em eventos? Caso do show do Coldplay nos diz muito sobre a resposta (Foto: Reprodução)

Coldplay se apresenta no Rock in Rio 2022 Stephanie Rodrigues/g1 Quando a "KissCam" de um show do Coldplay capturou um casal que tentou (mas não conseguiu) escapar dos holofotes, a internet imediatamente entrou em ação. Em poucas horas, o vídeo estava praticamente em todos os lugares. Memes intermináveis, vídeos de paródia e fotos dos rostos chocados do casal encheram os feeds das redes sociais. Investigadores online correram para identificar quem estava sendo filmado. A empresa de inteligência artificial e software Astronomer confirmou que seu CEO e a diretora de RH eram de fato o casal no vídeo — e anunciou a demissão do CEO no fim de semana. As consequências do incidente, é claro, geraram discussões sobre ética empresarial, responsabilidade corporativa e conflito de interesses. Mas também há implicações mais amplas em jogo em nosso mundo cada vez mais online — sobre o estado de potencialmente ser visível em todos os lugares que você vai ou rastreado pela "vigilância das redes sociais". Especialistas afirmam que é cada vez mais comum que momentos que poderiam ter sido planejados para serem privados, ou pelo menos reservados a um único local físico, cheguem à internet e até mesmo se tornem globais hoje em dia. Casal tem reação inusitada em show do Coldplay e surpreende Chris Martin Reprodução/TikTok Então, na era do compartilhamento social ultrarrápido e quando as câmeras são praticamente inescapáveis, estar em público ainda traz alguma expectativa de privacidade? Ou toda experiência está disponível para o mundo ver? Câmeras estão por toda parte Não é segredo que câmeras estão filmando grande parte de nossas vidas hoje em dia. Empresas, escolas e bairros usam ampla vigilância por vídeo 24 horas por dia. Locais esportivos e de shows também filmam torcedores há anos, muitas vezes projetando momentos divertidos da participação do público para o restante da plateia. Em suma, o espectador em cena se torna parte do produto — e o centro das atenções. E, claro, os consumidores podem gravar praticamente qualquer coisa se tiverem um smartphone no bolso — e, se for atraente para outros usuários de mídias sociais, essa filmagem pode se espalhar rapidamente pelo ciberespaço. Ellis Cashmore, autor do livro “Celebrity Culture”, propõe que a rápida fama do momento no show do Coldplay responde a uma pergunta que muitos vêm se fazendo há anos: “A vida privada ainda é o que era? E a resposta é, claro, que não existe mais vida privada”, observa ele. “Certamente não no sentido tradicional do termo.” “Não tenho certeza se podemos presumir privacidade em um show com centenas de outras pessoas”, acrescenta Mary Angela Bock, professora associada da Escola de Jornalismo e Mídia da Universidade do Texas em Austin. “Não podemos mais presumir privacidade na rua.” Alguma versão da "KissCam" tem sido um recurso básico em grandes eventos — desde intervalos durante jogos esportivos até músicas românticas tocadas por artistas em seus shows. É fácil não perceber, mas a maioria dos locais tem placas informando ao público que eles podem ser filmados durante o evento. O que mudou nos últimos anos, observam os especialistas, é a rapidez com que esses momentos podem viajar para além do espaço físico onde realmente acontecem. Isso não se limita ao que aparece em um telão. Às vezes, basta uma pessoa na multidão capturar qualquer interação com seu celular e postar o vídeo online — de onde ele pode ser distribuído para o mundo todo. “Não é só a câmera”, diz Bock. “É o sistema de distribuição que é novo e sem regras". Grace Springer, que publicou o vídeo, brinca sobre caso do casal em show do Coldplay Reprodução/Instagram Além da viralização, há a identificação Há também o segundo ciclo de exposição: o que acontece depois que o vídeo ou as fotos se espalham. Especialistas apontam para o crescente número de usuários de redes sociais correndo para identificar publicamente, ou "doxar", as pessoas capturadas pela câmera — assim como a rapidez com que a internet se comprometeu a encontrar os envolvidos no momento do Coldplay, por exemplo. As páginas do LinkedIn pertencentes ao agora ex-CEO e ao diretor de pessoal da Astronomer seguem desativadas até esta segunda-feira. Mas isso não se limita aos executivos da empresa. Andy Byron, CEO da empresa Astronomer, e Kristin Cabot, funcionária da empresa, foram identificados em posts no X Reprodução/Redes sociais Além de alguém simplesmente identificar um rosto familiar e espalhar a notícia, os avanços tecnológicos — incluindo a IA — tornaram mais fácil e rápido, em geral, encontrar praticamente qualquer pessoa em uma publicação online. Isso pode acontecer com vídeos e fotos compartilhados nas redes sociais todos os dias, mesmo que não viralizem, alertam especialistas. “É um pouco perturbador a facilidade com que podemos ser identificados por biometria, como nossos rostos são exibidos online, como as redes sociais podem nos rastrear — e como a internet deixou de ser um local de interação para se tornar um gigantesco sistema de vigilância”, diz Bock. “Quando você pensa nisso, estamos sendo vigiados pelas nossas redes sociais. Eles estão nos rastreando em troca de nos entreter.” E, claro, esses momentos também podem impactar pessoas que não estavam realmente sendo filmadas. Por mais fácil que seja ser identificado online hoje em dia, a internet é notória por ser muito ampla ou nem sempre acertar. Isso às vezes resulta em assédio a indivíduos que não estão realmente envolvidos. No show do Coldplay da semana passada, por exemplo, muitos usuários de redes sociais especularam que uma terceira pessoa vista perto dos dois flagrados pelas câmeras seria outra funcionária da Astronomer — o que levou a uma enxurrada de postagens direcionadas a ela. Mas a empresa confirmou posteriormente que ela não estava no evento e disse que nenhum outro funcionário estava no vídeo que circulava online. Para o momento agora viral, "podemos conversar sobre o que é certo e errado, e se eles mereciam", diz Alison Taylor, professora clínica associada da Stern School of Business da Universidade de Nova York. Ainda assim, é "muito assustador ver tanto abuso e assédio online", observa Taylor. "Existem seres humanos reais por trás disso." É difícil imaginar que esse tipo de momento viral algum dia vá desaparecer — e há poucas restrições legais que impeçam os usuários de compartilhar clipes de interações gravadas, de qualquer coisa, desde um show até as ruas, amplamente online. Mas, em um nível individual, Bock diz que pode ser útil "pensar antes de compartilhar" e questionar se algo é realmente preciso. “As mídias sociais mudaram muito”, diz Bock. “Mas nós, como sociedade, ainda não alcançamos a tecnologia em termos de ética e etiqueta.” Chris Martin se surpreende com reação de casal em show do Coldplay